sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, 
obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. 
Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora 
de mim: secas. Tão só nesta hora tardia – eu, patético detrito pós-moderno 
com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, 
Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as
 palmas das mãos de carícias não dadas. Preciso de alguém que tenha
 ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para,
 porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio 
desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, 
o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, 
nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que 
eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente
 do outro lado e sentir uma resposta como – eu estou aqui, eu te toco também. 
Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita
e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão. 
No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, 
da noite e do deserto – preciso de alguém para dividir comigo esta sede. 
Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes
 nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor.
 Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, 
depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra
 de encontrar noutro olhar que não o meu próprio – tão cansado, tão causado – 
qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho.
 Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. 
Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor.
 O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. 
Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto.
 E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes 
enganosos transitórios – que importa? 
(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, 
responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, 
meu amor que nunca veio – viria? virá? – e minto não, já não preciso.)
 Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos
 demorados quanto minhas insônias insuportáveis.
Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. 
Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. 
Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma 
coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, 
e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha
 boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão 
crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, 
quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que 
fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas
 e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei.
 Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, 
mas guardada em você que eu não conheço. Tenho urgência de ti, meu amor
Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, 
para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza
 que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, 
não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. 
Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras
 todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo.
 Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: 
preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. 
Como se fosse possível, como se fosse verdade, 
como se fosse ontem e amanhã.

- Caio Fernando Abreu
Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87

Nenhum comentário:

Postar um comentário